Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Sobre Livros e Cidades

As Cidades e os Livros na Baixa Idade Média

Uma visada cartográfica

“Aliás, o livro é produto de um meio bem específico – a cidade, a polis. Realmente sem o apoio urbano, ele ter-se-ia confinado à sua forma esotérica, privilégio de poucos, sem a grande audiência das populosas e ricas urbes. Quando a cidade se alargou e se tornou exigente, o livro deu um passo a frente: transformou-se de manuscrito em impresso. Foi um longo e aturado labor, que demorou séculos a resolver. Mas perante a premência da cidade houve que achar novos processos técnicos que permitissem resolver a questão que estava neste ponto: o manuscrito é raro e por isso caro, a sua elaboração é morosa e por isso incapaz de responder às exigências de um século XIV ou século XV (...)". Jorge Peixoto, “Prefácio”. In Douglas McMurtrie, O livro. 3ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. XI-XII.

Uma rua do Quartier Latin. Fotografia tirada em março de 2012,
 durante uma promenade instrutiva com Frédéric Barbier
Já é um truísmo afirmar que a emergência da economia do livro na Baixa Idade Média está estreitamente ligada ao renascimento das cidades e sua expansão no Velho Mundo. Como bem o observa Jorge Peixoto, “sem a grande audiência das populosas cidades” dificilmente o livro atingiria o impulso observado entre os séculos XIII e XV, o período laico dos códices manuscritos.
Além do fator demográfico já explicitado pelo autor, o desenvolvimento das funções urbanas (político-administrativa, mercantil, religiosa e educacional) nos leva a compreender este primeiro impulso do mercado de livros, o qual ultrapassa as fronteiras tradicionais do livro religioso, em comum acordo com a cultura escrita até então dominante. Há de se considerar, ainda, o aparecimento de uma instituição forte, a saber, a universidade. Interessante observar que a expansão das universidades faz emergir novos profissionais, tipos sociais diferenciados, de lentes e estudantes, certo, mas também de todo um corpo burocrático que estimula o espessamento das camadas leitoras.
Paralelamente a esse movimento, conforma-se nessa sociedade todo um corpo de profissionais do livro, entre copistas, iluminadores, encadernadores, pergaminheiros – logo, papeleiros – que vão aos poucos constituindo uma economia forte nos antigos conventos e mosteiros, mas, também, nas corporações leigas. Organizam-se, nesse momento, verdadeiros métodos de produção em série do livro manuscrito, através do sistema da pesciae e da ação do stationarius que orienta a reprodução de cópias com base na demanda de sua clientela. Ou, ainda, para usar um caso particular, mas que provavelmente se verificou noutras partes, a presença dos suppôts, este funcionário contratado pela Universidade de Paris, no século XIII, que se dedicava exclusivamente ao fornecimento dos livros encomendados pelo colegiado.
Também as universidades assistem ao desenvolvimento de corporações ligadas ao livro nas vizinhanças de sua sede. Assim a presença de editores e livreiros no velho quartier da Sorbonne, citando uma vez mais o caso parisiense. Ainda na rue Saint-Jacques dos nossos dias, a toponímia e alguns imóveis denunciam o movimento intelectual e sua relação com o universo livreiro ali vislumbrado no “outono da Idade Média”. No mesmo quartier uma rue des Parchemaniers diz muito sobre a economia do livro no coração da cidadela medieval.
Todavia, se parece evidente a presença do livro como um produto e, ao mesmo tempo, um propagador da cultura urbana que se desenvolve no espaço europeu a partir do século XIII, menos perceptível é a importância das cidades na organização de uma rede de trocas de manuscritos e de profissionais ligados à economia do livro. Nesse caso, vale a fórmula “cidades e rotas, rotas e cidades”[1] evocada por Fernand Braudel (1902-1985), à luz do mestre Lucien Febvre (1878-1956). Eis, em poucas palavras, a dupla vocação das cidades: de um lado, consolidam-se internamente como espaços dinâmicos, com suas feiras, seus corpos administrativos, suas igrejas, seus centros intelectuais (entre universidades, colégios, repúblicas e escolas laicas); de outro, comportam-se, para citar novamente o autor do Mediterrâneo, como colmeias. Nutrem-se do espaço; apoiam-se umas as outras em redes; organizam-se de forma hierárquica, de acordo com suas funções.
As Vias de Comunicação na Europa (s.XI-XIII).
R. Lopez, The Birth of Europe. Londres: J. M. Dent & Sons, 1966.

Se a dinâmica das cidades move e alimenta os circuitos do livro, parece certo que o esgotamento deste primeiro impulso econômico ocorre no interior das próprias engrenagens que o criou. As inovações técnicas inscritas nos séculos XIV e XV, primeiramente, o desenvolvimento dos moinhos de papel feitos a partir de trapos de tecidos e, finalmente, a invenção dos tipos móveis, [elas] surgem como resposta à impossibilidade de se atender à demanda crescente de livros. Estas inovações potencializam o papel das cidades e de suas rotas, consolidando, outrossim, o caráter movediço dos profissionais do livro. Donde a difusão rápida das oficinas tipográficas logo nas primeiras décadas de seu aparecimento.


 



[1] “Eu não intitulo este capítulo ‘Rotas e cidades’, mas ‘Cidades e rotas, rotas e cidades’, em memória de uma reflexão de Lucien Febvre na primeira leitura destas páginas”. Fernand Braudel, La Méditerranée et le monde méditerranéan à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin, 1990, tome 1, note 1, p.505. [1ª. Edição: 1949].

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Sobre Livros - Um Ateliê Muito Especial

Entre Livros e Amigos no Ateliê de Luiz Fernando Machado

Foto: Patrícia Póvoa - Ateliê Luiz Fernando Machado
Finalzinho de uma manhã ensolarada. Manhã de outono. Novo encontro com Luiz Fernando Machado, este mago que lava livros desgastados para o reconstituir, transforma papelões e bibelôs e mantém a aura nobre do ofício de encadernador. Tudo no seu ateliê tem harmonia a proporção. Se fosse grande demais, tornar-se-ia uma manufatura. Se pequeno, todos os papeis ali dispostos, arte pura!, perderiam seu charme.
No ateliê do Luiz Fernando Machado há alegria, até na concentrada linha de produção.
Vamos ao trabalho. O objetivo da visita é apresentar aos alunos de Editoração, aos que acabam de ingressar, os fundamentos da encadernação de um livro. Todos já conhecem a anatomia deste objeto nobre, cuja nomenclatura se confunde com a do próprio corpo humano. O ofício do encadernador, por sua vez, tem lá seu jargão. A parte teórica fora discutida em sala de aula. Agora, era a hora de vê-la em prática. A preparação do volume, se necessário, o arredondamento da lombada, a colagem da pasta, a preparação dos nervos, a fixação do couro - os processos finais são sempre tensos! - a fixação da coifa, do debrum, enfim, a aderência do couro nos menores meandros daquele corpo inerte, porém, muito melindroso. Tudo é detalhe. Tudo é engenho e arte. 
Foto: Patrícia Póvoa - Ateliê Luiz Fernando Machado

A gravação na lombada constitui a etapa final. Não menos delicada, ela exige atenção no momento de compor as palavras e firmeza no punho. Não há a possibilidade do erro. Tudo é medido, pensado e executado com precisão.
Ufa! Atividade bem sucedida.
Mais um tour pelo primeiro andar e descobrimos o processo de douração. Certo, os cortes dos livros não são mais ornamentos como outrora, cujo processo consistia, no caso da douração, em uma mistura de pó de ouro com clara de ovo. Há muito estamos na era das fitas plásticas. Uma vez aquecidas, elas tornam nobre o objeto (livro ou caderno). Pura magia!
Etapa seguinte. Mais um andar e agora o ambiente é ainda mais compacto. Mas ali o artista reencontra seu ofício e seu prazer. A marmorização de papeis, diz Luiz Fernando Machado, exige técnica e empenho pessoal. Corpo e alma se entregam nesta atividade extremamente fluida e precisa - como isto? - a qual consiste em escrever, tecer, desenhar sobre uma superfície líquida. O resultado? Um caleidoscópio de possibilidades sobre o papel. E uma gama ainda maior para seu emprego!
De volta ao rés-de-chão, ma non troppo. Difícil voltar às coisas banais do dia-a-dia no espaço dedicado à loja. Ali tudo parece milimetricamente arquitetado para seduzir o flaneur. Pura magia! Aliás, a flanerie no ateliê de Luiz Fernando Machado é atividade altamente recomendável - faça sol ou faça chuva! - para os amantes dos livros e dos papeis. E, sobretudo, para aqueles que ainda buscam alguma forma de prazer.
Foto: Patrícia Póvoa - Ateliê Luiz Fernando Machado

Ah, voltando ao trabalho. A tarefa foi bem executada. Os alunos já estão aptos a discorrer de forma muito tranquila sobre a anatomia do livro e os processos de enobrecimento (deste já nobre objeto) através da encadernação artística.



sábado, 6 de abril de 2013

Sobre Livros - A Kommunista Párt Kiáltványa por Frans Masereel


Livro e Arte em sua Expressão Absoluta

Dedico este artigo a István Monok que me presenteou com esta pequena jóia bibliográfica

Operário busca compreender a sua história e seu lugar na sociedade.
Gravura de Frans Masereel para a edição de A Kommunista Párt Kiáltványa
Raros são os estudos voltados para as edições do Manifesto Comunista, em uma perspectiva nacional ou internacional.
Nesse sentido, o levantamento de Bert Andreas, Le Manifeste Communiste de Marx et Engels: Histoire et Historiographie (1848-1918), publicado por Feltrinelli, em 1963 - edição rara, motivo de muita cobiça entre os marxistas, amantes do livro - mantém-se insuperável, a um só tempo como obra de referência e modelo de pesquisa sobre a temática. No Brasil, esforço semelhante de mapeamento e análise das condições de edição e difusão deste símbolo da classe trabalhadora, escrito por Marx e Engels, em 1848, foi realizado pelo historiador Edgard Carone, também ele bibliófilo e amante dos livros.
Página dupla com gravura e texto de
A Kommunista Párt Kiáltványa.
O levantamento de Bert Andreas se limita às edições publicadas nos contextos da Primeira Guerra e da Revolução Russa, pois se trata, com efeito, de conhecer o alcance do Manifesto desde suas origens até o momento de consolidação da luta do proletariado em 1917. Seria, contudo, interessante compreender em que medida a ação do PCUS, do Instituto Marx e Engels de Moscou e dos partidos comunistas organizados em todo o mundo concorreram para a multiplicação de edições do Manifesto. Dada a dificuldade de um catálogo internacional das edições deste documento que se tornou o vade mecum de todo comunista, as investigações adquiriram uma colocação nacional, tendo a organização dos PCs como ponto de partida. Pelo menos é nesse sentido que Edgard Carone organiza suas investigações sobre o que o autor considera como a “problemática da literatura operária”.
O volume de 7,3 x 11,3 cm
cabe na palma da mão.
Uma edição, contudo, torna-se notável, menos por sua circulação entre os leitores comunistas do que por seus atributos materiais. É verdade que a questão do público a que se destina esta edição importa muito, bastando considerar que se trata de um pequeno volume do Manifesto Comunista vertido para o húngaro, o qual era distribuído para as autoridades em visita ao país. Todavia, o livro fora impresso e encadernado na República Democrática Alemã, em 1973. O volume do qual nos ocupados data de 1975. Saltam as vistas os caracteres formais desta edição. A composição é elegante e a impressão bem cuidada. O volume apresenta encadernação em marroquim, com moldura em relevo e apenas uma linha dourada no lombo, o que não deixa dúvidas sobre o bom gosto e a delicadeza do projeto. O corte é tingido em vermelho apenas na cabeça do livro. O papel é apergaminhado, com vergaturas que lhe dão um aspecto rústico. O conjunto se torna ainda mais harmonioso com o emprego de uma guarda estampada com manuscrito vazado em fundo vermelho. Enfim, todos os caracteres convidam à sofisticação deste volume.
Mas o que dignifica a presente edição de A Kommunista Párt Kiáltványa são as gravuras que ilustram o texto. Dizer ilustrar é muito pouco para o trabalho deste grande mestre da narrativa que foi Frans Masereel (1889-1972). Pode-se mesmo dizer que as xilogravuras que acompanham o texto contam por si a luta da classe operária.
"A modern államhatalom nem más, mint az egész burzsoá osztály kösös ügyeit igazgató bizottság". 
Frans Masereel nasceu em Gand, cidade belga, voltada para o mar. Jovem, beneficiou-se das condições confortáveis oferecidas pelo ambiente burguês ao qual pertencia para se dedicar aos estudos das Belas Artes nas principais instituições europeias. Ingressou na Academia de Gand aos 18 anos e continuou sua formação em Paris e em Londres. A Primeira Guerra certamente significou um momento de ruptura e definição dos caminhos trilhados pelo artista. Die Passion Eines Menschen25 Holzschnitte, chef d’oeuvre de Frans Maserrel publicado em Munique, em 1918, marcou data na história da gravura. Thomas Mann se lembraria do livro dez anos mais tarde como a obra que mais o impressionara. As 25 Imagens da Paixão de um Homem fazem emergir a vida de um operário, do nascimento até os momentos finais da vida. “Paixão”, nesse sentido, é usado com todo o peso que a tradição cristã lhe conferiu: o sofrimento, a dor, as chagas de Cristo, neste contexto, mimetizam-se no sofrimento, na dor e nas chagas do operário. As marcas da Guerra e da sociedade industrial se definem nas grossas linhas negras do artista.
Essas mesmas linhas e a mesma temática do operariado serão retomadas na edição de A Kommunista Párt Kiáltványa. Onze gravuras acompanham o texto, dialogam com o texto, acentuam seu caráter dramático e, se isoladas, contam elas mesmas de forma heróica a luta da classe operária contra a burguesia. Notemos ainda que os traços, os gestos e a massa de edifícios, chaminés, multidões, enfim, todos os elementos que compõem o ambiente dos trabalhadores representados nas gravuras desta edição de 1973 dialogam diretamente com aquelas cenas marcantes gravadas no livro fundador, de 1918. Seria o caso de se perguntar se algumas matrizes daquela época não foram aproveitadas para o Manifesto, tal a aproximação das temáticas e as semelhanças do herói da narrativa. Ou, de forma oposta, se o livro composto na época da Guerra, se as Imagens da Paixão de um Homem não revelam a tomada de consciência de um burguês frente à débâcle dos valores de sua sociedade. Não teria ele se alimentado das mesmas leituras de crítica social, senão, das matrizes marxistas que movimentaram o mundo em 1917? As 25 gravuras da “paixão” não teriam sido o testemunho da consciência tomada a partir da leitura do Manifesto? As mesmas gravuras que agora enriquecem esta bela edição, sob a forma de um delicado missal, impresso em húngaro?
"Világ proletárjai, egyesüljetek!"
Deixemos as imagens contarem por si a saga do operariado no negrume impresso pelo artista. Por Frans Masereel, o mestre da expressão absoluta.

Fonte: Peter A. Beronä. Introd. Peter Kuper. Le Roman Graphique. Des Origines Aux Années 1950. Paris: La Martinière, 2009.
Karl Marx; Friedrich Engels. A Kommunista Párt Kiáltványa. Berlin: Dietz Verlag, 1975.