Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.
Mário Quintana

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O Livro à For da Pele

O que torna o livro único?

A posse, o amor reservado a um exemplar, a paixão, o fetiche, diriam os bibliômanos, são componentes que justificam toda a forma de luta em nome da posse de um exemplar raro.

Imagem de Nicolas Taffin para Livro, de Michel Melot
(Ateliê Editorial, 2012)

Já foram evocadas nesta coluna algumas reações extravagantes – para se dizer o mínimo – provocadas pelo livro. Fantasias, delírios e até mesmo crimes tiveram neste objeto seu principal impulso. Donde a ideia do livro como veículo de fruição, para evocar um clássico da literatura histórica e policial de Umberto Eco. Em O Nome da Rosa (1980), os leitores que ousaram folhear um volume proibido, cujo conteúdo fatalmente os conduzia ao riso, foram envenenados pelas próprias páginas.
Também o livro-corpo tematizado por Peter Greenway, no filme Pilow Book (1996), explora esta comunhão entre o leitor e o objeto possuído, através do uso da pele humana como suporte da escrita. Escrever sobre o corpo da mulher amada faz dela um livro único. Fazer da pele humana um livro constitui uma forma radical – e tradicional – de individualização do objeto.
Notemos que os dois exemplos conferem uma intimidade rara ao ato da leitura, este momento sublime da posse. Folhear um livro constitui gesto supremo da comunhão dos corpos.
No corpo do livro se concentram os principais atributos que os tornam únicos em meio a outros exemplares. Encadernações raras enobrecem o livro. Em pergaminho ou em couro, são muitas as modalidades, das mais sóbrias às mais ousadas. O couro – ou a pele – é material flexível e resistente o bastante pare se moldar a toda sorte de exigências e gostos. O uso da pele humana nas encadernações se apresenta, nesse sentido, como expressão plena da fusão entre o corpo e a alma em um só objeto. Ela desafia a perenidade do corpo, da carne, ao selar para sempre seu destino ao da alma do livro, seu conteúdo. É o que nos faz crer as recentes descobertas realizadas em Harvard de livros encadernados com pele humana. Um volume em especial reforça esta ideia. Des destinées de l’âme, publicado em 1879, por Arsène Houssaye (1814-1896), como o próprio título indica, volta-se para um dos grandes mistérios da humanidade, a saber, o da finitude e, por extensão, o da possibilidade da vida após a morte. Uma anotação datilografada, inserta no exemplar, indica que o livro foi encadernado com a pele da "parte de trás do corpo não reclamado de uma paciente em um hospital psiquiátrico francês que morreu repentinamente de apoplexia". Do primeiro proprietário do volume, amigo, aliás, do autor, o médico de nome Bouland, a síntese entre corpo e alma do livro não poderia ser expressa com palavras mais precisas: 

"um livro sobre a alma humana merecia ser inscrito sobre a pele humana".