Do Dicionário de Citações

Dupla delícia.
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Mário Quintana

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sobre Livros - A primeira Biblioteca Pública de São Paulo


Sendo certo que as Bibliotecas Publicas muito concorrem para os progressos das Artes, e Sciencias, de que dimanão tanto bem aos povos, e vendo a solicitude, com que Sua Magestade (sic) o Imperador Tem protegido a Instrucção, e Letteratura n’este Imperio, julguei, que obrando n’esta conformidade, satisfaria as Suas Beneficas Intençoens, e por isso assentei, de unanime accordo com a Junta da Fazenda, estabelecer n’esta Capital huma Bibliotheca (...) 

Vista de São Paulo, em aquarela de Thomas Ender, 1817. A última torre à direita, já acompanhando a linha do horizonte, vê-se o Convento de São Francisco, fundado em 1647.
Em 1825 seria ali instalada a primeira Biblioteca Pública de São Paulo.
Data de 24 de abril de 1825 a inauguração da biblioteca pública de São Paulo. É a primeira da província, mas não do Brasil. Antes, foram oficialmente inauguradas as bibliotecas públicas da Bahia, em 1811, e a do Rio de Janeiro, em 1814. A primeira representa o esforço da elite local no sentido de ilustrar as gentes. Para tanto, a biblioteca foi organizada com recursos particulares, aos moldes dos gabinetes de leitura, organizações que começavam a surgir nas cidades portuguesas, aqui chegando algumas décadas mais tarde. Já a biblioteca criada no Rio de Janeiro, nos tempos do Regente d. João, tinha uma característica muito peculiar, porquanto seu acervo era parte integrante de todo o aparato trazido pela família real durante sua transferência para o Brasil. Franqueada para um seletíssimo público, este exemplar não parece ter relação direta com os ventos emancipacionistas que pairavam por todas as partes, naqueles momentos decisivos do sistema colonial.
Lembremos que em 1822 a cidade se tornara sede administrativa da província. Em 1823, ela ganhou o título de Imperial. No mesmo ano, S. Paulo figurava nos acalorados debates da Assembléia Constituinte como candidata a abrigar a primeira Universidade da nação. O projeto de uma universidade não vingou, mas por lei aprovada em 11 de agosto de 1827, Olinda, ao norte e São Paulo, ao sul, tornaram-se os dois centros de formação jurídica do país. Mesmo que todos estes fatos não tenham provocado, em curto prazo, alterações na vida material citadina, eles indicavam novos caminhos. Políticos, certo. Mas também culturais. A biblioteca acenava, pois, para a emancipação espiritual da cidade.
Qual raciocínio Lucas Antônio Monteiro de Barros poderia apresentar junto ao poder central, para justificar a abertura de uma biblioteca pública, senão o de uma missão civilizadora, ainda que refreada pelas dificuldades de se fazer avançar a sociedade como um todo? É o que observamos no ofício endereçado a João Severiano Maciel da Costa, representante da Junta da Fazenda Nacional, que passamos a citar:

Uma vez reorganizado o governo, coube ao primeiro presidente da província de São Paulo, Lucas Antônio Monteiro de Barros, visconde de Congonhas do Campo (1767-1851), a proposição de uma série de medidas que visavam incrementar os recursos materiais e mentais da urbe. Durante sua administração, entre os anos de 1824 e 1827 – com alguns interlúdios, devido à atuação simultânea como senador por São Paulo – verificou-se a instalação, em 1825, do Seminário da Glória, destinado à instrução de meninas órfãs pobres e de uma roda dos expostos, anexa à Santa Casa de Misericórdia. A reforma do Jardim Público da Luz, fundado em 1799 pelo capitão-general Antônio Manoel de Melo Castro e Mendonça, que por estes tempos se encontrava em estado de abandono, foi igualmente executada pelo dito Presidente, durante sua gestão.
Illustrissimo e Excellentissimo Senhor – Sendo certo que as Bibliotecas Publicas muito concorrem para os progressos das Artes, e Sciencias, de que dimanão tanto bem aos povos, e vendo a solicitude, com que Sua Magestade (sic) o Imperador Tem protegido a Instrucção, e Letteratura n’este Imperio, julguei, que obrando n’esta conformidade, satisfaria as Suas Beneficas Intençoens, e por isso assentei, de unanime accordo com a Junta da Fazenda, estabelecer n’esta Capital huma Bibliotheca (...) induzindo-me mais, para pôr em pratica esta medida, a consideração de ser conveniente ir desde já facilitando os meios precisos para o Estabelecimento de huma Universidade n’esta Provincia, como se tinha deliberado na Assembleia geral Legislativa, e de haverem [sic] n’ella muitos homens estudiozos, e de talentos, que não os cultivão pela falta de boas obras, e ainda mais pela de meios, para as obterem, inconveniente este que cessa com similante providencia (...) Rogo portanto á V. Exa. queira levar ao Conhecimento de Sua Magestade (sic) Imperial, quanto tenho ponderado, esperando da Beneficencia do Mesmo Augusto Senhor, que Haja de Approvar este procedimento, para o qual também tive em vista, que a multiplicação d’estes, e outros interessantes Estabelecimentos, alem de fazerem avançar rapidamente a Civilização, e Instrucção Publica, dão credito á grande Nação Brazileira. Deos guarde a Vossa Excellencia. São Paulo, 1º de setembro de 1824. – [assinado por Lucas Antonio Monteiro de Barros. Presidente de Província da cidade de São Paulo].
Os espaços de leitura na cidade de São Paulo (1870-1825)
Mapa desenhado por Ederson Munhoz Reis Matos
Teve boa acolhida a proposta, posto que dois meses mais tarde, tempo necessário para o encaminhamento do pedido e a condução do processo, o presidente de província recebeu parecer positivo tanto para a reforma na estrada de Cubatão a Santos, concluída em 1827, quanto para a abertura da biblioteca pública.
De forma sintética, os argumentos expostos podem ser compreendidos nos termos seguintes. A falta de livros, malgrado o fato de “de haverem [sic] n’ella [na cidade] muitos homens estudiozos, e de talentos”, era um empecilho para o progresso das artes e da ciência. Além disso, o projeto visava à criação de uma universidade. Idéia que se discutira nas Cortes de Lisboa, na época de d. João VI e que se fortaleceu após a proclamação da Independência. E como o próprio governo provincial deixou entrever em seu discurso, todas essas medidas não se destinavam exclusivamente à cidade, ou à província, mas à nação. O projeto de uma biblioteca pública se tornava uma possibilidade, amparado no discurso civilizador e no afã de fazer da cidade o centro ideal para a recepção de uma universidade.
Por quais outros meios, senão os livros, estimular-se-ia, enfim, o conhecimento científico das gentes? Nesses termos, somente as idéias de civilização e progresso subjacentes ao livro poderiam explicar os esforços no sentido de fazê-lo circular de forma mais ampla. Era este, afinal, o espírito do tempo.
À parte o significado escolástico atribuído ao termo “civilização” e à idéia de “civilidade”, que foi amplamente difundida no Império português desde os tempos do Marquês de Pombal (1699-1782), vale lembrar que os espíritos mais ilustrados do Império brasileiro igualmente se empenharam nessa mesma missão civilizadora durante todo o Oitocentos. A própria instalação de cursos superiores em capitais estratégicas do país: no Rio de Janeiro e em Salvador, as faculdades de Medicina; em Olinda e em São Paulo, conforme assinalamos, os cursos de Ciências Jurídicas e Sociais o testemunham.
Enfim, podemos dizer que o elemento principal de diferenciação entre as reformas verificadas no período pombalino e as realizadas no Império brasileiro reside no fato de que todo o suporte cultural promovido pelas classes dirigentes nacionais se insere em um novo contexto, o da formação de uma classe hegemônica com matiz nacional. O que atentava à busca de novos paradigmas alheios ao circuito lusitano.
A versão completa do presente texto se encontra em Império dos Livros: instituições e práticas de leituras na São Paulo oitocentista. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2011.

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